sábado, 21 de dezembro de 2024

Nota de Rodapé Que diz Mais que Um Livro Inteiro

 Para entender como e por que me encontro hoje apegada à nota de rodapé que explica um dos parágrafos mais enigmáticos desse ano que acabou é necessário recapitular-se algumas páginas. Eis o parágrafo complexo:

Em julgamento desprovido de foro privilegiado, sequer de legislação que qualquer centavo valha, recebi por escrito a dura sentença que colocou fim prematuro ao sopro mais próximo que tive de viver uma história de amor. Embora algoz, a condenação veio sim acompanhada de uma justificativa. Mínima, tosca, infantil, semelhante à esmola que se dá tão somente como pedágio instantâneo para ver-se livre rápido daquele que a pede:

“Você sente demais. E eu não sinto tanto”.

O que é sentir demais? E o que é não sentir tanto?

Sinto como sempre senti quando sinto. Ou sinto, ou não sinto. Qual régua foi utilizada? Em qual escala foi medido o sentimento? Como fora calibrada essa balança? Se Astrolábio fora o nome dado a um menino que nasceu de um amor proibido e mais tarde o mesmo nome batizado o instrumento que mede a distância entre estrelas, como pode um par de flores dadas, dois jantares feitos, um bilhete entregue e alguns cafés coados serem classificados como “você sente demais”?!

Eis a nota de rodapé:

“Você estava dormindo, sem nada a te cobrir. Quando, à luz do amanhecer, não pude desviar meus olhos de tuas costas. Muitos riscos, muitas marcas, alguns sinais de perfuração. Se foi por causa de flechas ou de açoites, não sei. Fato é que não pude deixar de notar – quando você se virou em pleno sono – que muitas dessas marcas fizeram travessia loga e lenta em tua carne e chegaram ao seu peito que para mim, até então era alvo. Por demasiado agitado, teu sono fazia inchar a cada respirar aquelas marcas… Róseas algumas, outras ainda muito vermelhas. Teu sorriso de dia a mim pareceu falso, uma armadilha para me prender para que de noite pudesse atender ao teu pedido silencioso de colocar-lhe bandagens. Sinto muito, tenho asco”

Esta foi a primeira vez em que me detive em uma nota de rodapé. A mim sempre pareceram desnecessárias. Um trabalho preguiçoso do autor que não soube incorporar ao texto o significado do que lá queria dizer. Uma muleta. Um desvio de atenção desnecessário.

Realmente, sinto demais. Gostaria de ter passado por aquela nota de rodapé como sempre passei por todas as notas de rodapé, com desdém e a devida desatenção. Mas ali me demorei, sorvendo cada entrelinha daquela nota que continha mais verdade, mais sentido, mais sinestesia que qualquer clímax.

É bem verdade que a travessia vista a olho nu de tudo que da escápula conseguiu chegar ao tórax conferiu-me a triste qualidade de “sentir demais”. Sinto muito, é que – nessas condições – nem mesmo o respirar fora tarefa fácil.


0 comentários: