quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Emurecer



Acontece que vez por outra Tom Camplot se dava a conversar com árvores, mais especificamente ciprestes, mais especificamente Arthô, o mais antigo dos ciprestes plantados na parte do jardim real em que as pessoas da cidade podiam freqüentar.
E naquele dia uma coruja magra anteviu o tamanho da conversa e se aconchegou sob as asas para embarcar num bom cochilo.
- sabe Arth, não entendo a falta de sede dos pés das pessoas que ficam na cidade para sempre – indagou Tom, numa indignidade serena, meio revoltado meio sonhador, domado pela imaginação lúdica sobre o que poderia encontrar fora da aldeia – Com tanta montanha emurecendo* os bairros, como não ter sede de ver o que está além?
- ah, meu jovem, acontece que nem todos os homens já se deram conta de que são homens e não árvores. Muitos ainda acordam e maldizem os próprios pés por serem obrigados a marchar, desejando mesmo é ter raízes... – a árvore, sentindo uma comichão nas próprias raízes ao dizer a última frase, fez tremer de leve a terra abaixo de si, acordando a coruja com um pio frustrado.
- e o que são os homens que maldizem as raízes querendo mesmo é voar? – aqui, o pensamento do garoto voou para a trouxa amarrada num galho escondida sob sua cama, junto com um cantil de couro e um mapa roto do oeste das Terras Ermas.
- esses têm um pouco de ave dentro deles, já entenderam que raízes são para os que não aprenderam a andar e descobriram dentro de si algo que veio de muito longe e agora quer voltar. – de vez em quando os galhos mais altos de Arthô se arranjavam de molde a parecerem olhos, e naquela altura da conversa esses galhos analisavam o garoto com uma desconfiança acertada de que o mais jovens dos Camplots era um homem ave.
- isso quer dizer que de alguma forma esses homens já estiveram nos lugares que hoje só aparecem em sonhos? – com isso, seus olhos nas nuvens desceram ao chão como um raio e sentou-se de um salto ao lembrar-se da noite anterior em que seu sono fora palco de um duelo etéreo com dragões de vento – mas isso seria impossível! Minha família não deixa a cidade há três décadas!
- hohoho o que te faz pensar que algures dos sonhos são mais impossíveis do que o mundo concreto da feira de domingo? Não deixe que seus pensamentos também criem raízes, meu bom rapaz. – com um de seus galhos mais perto do chão conduziu as costas do garoto de volta à grama – se queres chamar alguma coisa de impossível, chame os sapatos de cetim lilás do rei de impossíveis, não os sonhos!
- você tem razão, esses são impossíveis... – com um rizinho contido Tom  voltou a contemplar o desenho dos galhos do Cipreste sob o céu claro, reunindo coragem para perguntar o que há muito lhe atormentava: Arth, o que encontrarei lá fora tem a ver com meus sonhos?
...

*Do neoverbo “emurecer” – colocar muros; cercar de muros; construir muros ao redor.

1 comentários:

João disse...

Eu sempre fico sem saber direito o que comentar além de um "gostei" ou "caramba", mas quero que fique claro que é por dificuldades de articular uma opinião coesa, não por ausência de opiniões.

Ou seja, "gostei".