sexta-feira, 11 de março de 2011

O Atanor




Voltando para casa após a mais onírica das conversas com uma árvore, Tom saltava pelos pontilhados luminosos na grama que eram os próprios reflexos das estrelas. Lá onde e quando vivia Tom Camplot as estrelas com seus brilhos ainda encontravam caminho através da atmosfera para baterem no chão da Terra, ensaiando os homens para o que um dia chamar-se-ia eletricidade.
Naquela noite os pés de Tom pontilharam o que lembrava muito a imagem de um tigre de cenho muito, muito enrugado e isso nunca havia sido sinal de que alguém encontraria flores pelo caminho. Contudo, ao virar a primeira viela empedrada da parte do reino onde moravam lavradores e artesãos, o mais jovem dos Camplots quase tombou com a florista da cidade, Artemis Camplot, carregando as últimas mudas de lírios brancos da noite trazidos na maior das clandestinidades, pois os três sinos já haviam batido.
“Mamãe! o que a senhora está fazendo aqui fora! Sabe que não podemos ser pegos mais uma vez!” – exclamou Tom, deixando o susto para assumir um tom de impaciente reprovação.
“Você sabe que os lírios não podem viajar durante o dia, Tom.“ – explicou Artemis com uma paciência pouco usual para alguém ao ar livre após as três badaladas. Geralmente, quando alguém estava ao ar livre após as três badaladas o timbre da voz tremia, aflito e rouco.
Caminhando juntos com certa cumplicidade partilhada, pois ali estava alguém que conversava com árvores e alguém que arriscava a própria integridade física pelo bem estar de flores, os últimos dos Camplots carregavam uma paz que pouco existia naqueles tempos, fruto da combinação entre a coragem dos Camplots e o pouco apreço pelas regras infantis da época em que viviam.
Apreciava aquelas pequenas aventuras com sua mãe, a qual nunca o incentivara a bajular as leis emanadas de um rei fraco. E na caminhada cheia de culpa ignorada, pela segunda vez naquela noite, Tom Camplot lembrou-se da trouxa amarrada sob sua cama, junto com um mapa das Terras Ermas. Por lembrar-se da sua iminente partida, disse adeus em pensamento às ruas conhecidas. Por isto também lançava vários olhares ao rosto de sua mãe, despedindo-se num mudo adeus.
Tomou um pouco de lírios dos seus braços para aliviar-lhe o peso, admirando-se com sua calma, a fronte queimada de sol onde nasciam as primeiras rugas e estas apenas de vez em quando deixavam seu rosto, pois apenas de vez em quando ela deixava de sorrir. Encantava-lhe tudo, e gravava na memória as unhas eternamente sujas de terra,  os galhos e folhas a tecerem para sempre morada em seus cabelos cor de vime.
Mas o pontilhado de tigre continuava no chão e se Tom havia topado com flores até ali isto havia sido puro erro de configuração do encadeamento de acontecimentos daquela noite. De modo que tudo começa a entrar nos eixos e o tigre refletido sob seus pés começou a fazer sentido quando duas sombras no dobrar da esquina começaram a inchar no chão.
 De solavanco Tom conduziu Artemis para uma fenda num muro que outrora emurecia* mais do que um lote árido. Mas, por sua vez, ficou exposto, com o peito arfante escondendo o rosto com os lírios numa camuflagem quase cômica.
“ entre aqui, sabe que não pode ser pego mais uma vez!”
Exclamou Artemis numa bronca fora de hora para o filho.
“não vê que não tem espaço!” o sussurro nervoso, mais alto do que deveria, provocou um movimento brusco nas sombras que logo tropeçaram ao tentarem se postar em posição de ataque de forma muito amadora.
Com as últimas palavras, Artemis cerziu o pulso do filho com seus próprios dedos livres, puxando-o para a fenda que misteriosamente revelou-se um corredor.
“que raios...!”
“fique quieto, eles ainda podem nos ouvir.”
Caminharam sobre o que pareciam ser peças de artefatos de minério há muito abandonadas; com isso Tom pisou na ponta curva de um martelo, fazendo com que o cabo da ferramenta, por reação, golpeasse sua canela. Seu rosto encheu-se de dor segurada por um monte de ar de grito comprimido por suas bochechas.
“aonde estamos indo?!”
Mas Artemis não respondeu, apenas continuou a marcha já conhecida de seus pés que não pela primeira vez escapavam pelas passagens desconhecidas da cidade. Caminharam por bem uma hora, ao fim da qual respiraram o ar da noite ornado por estrelas e duas luas a mais.
“e agora, pode me dizer o que foi aquilo?”
“uma entrada para o jardim real, ou não está reconhecendo aquela árvore ali adiante” – Respondeu Artemis com a ponderação de quem parecia estar tomando chá, e não fugindo noite afora. Mas tinha razão, aquela era uma parte do jardim real em que as pessoas da cidade podiam freqüentar, e, sim, logo adiante repousava Arthô, o Cipreste Sábio, na plena imponência dos pinheiros.
[...]
“Sabe, Tom, há muito tempo os sábios ainda se sentavam ao redor de fogueiras e conforme fosse a audiência revelavam mistérios que há muito foram trancados debaixo da terra. Um deles, - e o único que cheguei a escutar - falava sobre o Atanor do Coração. Um lugarejo no coração de cada homem onde nada permanecia bruto. O problema é que quando se falava em atanor** logo surgia a problemática do espaço, sobre a qual argumentavam que um trambolhão desses não caberia no peito de ninguém.”
Artemis girou os olhos como da mesma forma como fizera quando criança, diante dos racionalismos angulares dos adultos.
“Mas nós, crianças percebemos logo que esse atanor não cabia no peito mesmo, mas sobrava espaço na imaginação e ali... ah... ali nada permanecia bruto como o chumbo.”
Por um momento o garoto e a árvore foram contagiados pelo suspiro de Artemis, vagando os olhos pelo céu como se não houvesse seres encapuzados num raio curto de distância procurando por eles. Enquanto escutava atento à história, Arthô providenciou duas folhas de sete copas enrolando-as com seus galhos mais articulados no formato de um copo rústico e mole, os quais encheu com doce suco de raiz tirado de três de suas próprias folhas retorcidas ao extremo e os estendeu aos dois humanos.
Com um aceno de gratidão, Artemis continuou, tomando um gole do líquido terroso:
“Achei prudente contar-lhe isso, Tom, porque me parece que logo logo você não poderá recusar algo que lhe transmute o medo em coragem. E esse mágico artefato que te falo deve acordar em você com esta história – numa pausa olhou fixamente para o coração do filho, o qual sentiu o frio da noite varrer-se do seu tórax - E talvez isso te ajude não só a transformar como a criar coisas novas...”
 
                                                                                                                                                          
*emurecer: colocar muros, cercar com muros de pedra, concreto.
**atanor: antigo caldeirão utilizado pelos alquimistas para, dentre experimentos, produzirem a pedra filosofal, capaz de transmutar chumbo – ou outros metais de bruta inferioridade – em ouro.                    

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