terça-feira, 17 de maio de 2011

O que Há Lá Fora



- O que encontrarei lá fora tem a ver com meus sonhos?

Esta havia sido a última pergunta de Tom Camplot ao seu Mestre, o qual, por sinal, era uma árvore. 
    Não raro o mais jovem dos Camplots se dirigia a certa parte do Jardim Real, onde se enfileiravam tortamente alguns ciprestes plantados mais ou menos no início dos tempos. E o mais antigo desses ciprestes, de quando em vez, dava-se a conversar com uma certa espécie de seres humanos.
E Tom Camplot pertencia a essa espécie, cuja característica principal era uma inquietude interior diante dos mistérios da vida, a qual planta no semblante desses homens e mulheres um olhar penetrante quando se vêem olhando para a face cheia de véus daquilo que não conhecem e anseiam por conhecer. Esta inquietude confere-lhes também uma audição mais acurada em lugares não desbravados, possibilitando escutar mais além dos sons e ruídos comuns. E, por último, eles possuem um tato nada ordinário para com os próprios sentimentos e pensamentos, sobretudo para com aqueles mais misteriosos, cuja origem e destino estão velados.
E tudo isso conferia aos Camplots um humorado desdém ante às pequenezes da existência cotidiana e um notório desapreço pelas regras e convenções que tolhiam as potencialidades humanas, tais como normas a proibirem conversas com árvores.
E na época e no lugar em que vivia Tom Camplot havia muitas destas normas.
Ainda assim, ali estava Tom Camplot, encurvado na sua má postura de garoto que ainda não chegara aos quinze anos, arrancando folhas secas da grama, aguardando a resposta de Arthô, o cipreste, o qual parecia ter ido até o núcleo da Terra com suas raízes buscar palavras, qual era o tamanho da demora para responder.
De quando em vez, as folhas mais altas do cipreste se arqueavam numa forma semelhante ao sobrolho humano; mas diante daquela pergunta seus olhos de árvore estavam fechados, pois cada uma de suas folhas era cúmplice de uma profunda meditação.
 Apenas após uma brisa continuada, a qual varreu cada galho e pôs em movimento cada ramo, resultando num som de folha mais vento que - para uma árvore, equivalia a um longo suspiro - Arthô falou:
- poucos homens sabem, Tom, mas são os próprios homens os moldadores de suas realidades. Tudo o que vemos, escutamos, tocamos ou sentimos tem uma raiz tão profunda e distante quanto as minhas raízes estão das folhas da copa. Tamanha é esta lonjura entre raiz e copa que muitas dessas folhas, lá em cima, julgam que foram posicionadas lá por uma borboleta,e não por causa de uma raiz tão misteriosa e oculta, a qual sequer crêem existir...
Tom lutava para acompanhar aquela explicação, a qual, como todas as anteiores, vinha na forma delgada que somente uma árvore conseguia transmitir. Mas sua tenra mente simplória de menino lhe traduzia as palavras do cipreste, tirando a seguinte conclusão: as coisas concretas não surgem do nada, porque elas têm um planejamento e antes de nascerem na forma, nascem no pensamento. Nada vem do acaso, tudo tem uma raiz, uma origem, um sentido de ser e uma finalidade.
- ...vou dar-lhe um exemplo: o carpinteiro, antes de expor suas magníficas cadeiras na feira de domingo precisa anteriormente fabricá-las em sua marcenaria. E antes de fabricá-las, ele precisa desenhá-las, projetá-las num papel. E antes mesmo do papel, meu bom rapaz, o carpinteiro precisa imaginar, em algures do seu pensamento, a cadeira com seus detalhes e ornamentos. E, se for um carpinteiro amante de sua profissão, sonhará com seus móveis , sonhará com uma cadeira perfeita noites antes de chegar a tocar a madeira rústica.
Arthô experimentava uma sensação de alegria serena, pois ao vislumbrar a expressão ligeiramente boquiaberta de seu discípulo, contemplava a certeza de haver retirado do coração do jovem uma erva daninha de dúvida e ignorância, substituindo-a por um grão de pólen de compreensão.
- Então quer dizer que...
Mas Arthô o interrompeu para fechar seu ensinamento com algo que, apesar de poder vir a atormentar Tom, jogaria um pouco de luz em cantos escuros de seu pensamento:
- ... assim como o dedicado carpinteiro, também é o viajante amante da aventura. Isto é, quando o viajante sonha e imagina a trilha e seus percalços antes mesmo de calçar as botas e se pôr a marchar. E quando começa sua jornada, ahh, meu bom jovem, o viajante contempla a trilha como uma velha amiga e salda com sorriso não apenas o oásis, mas também os abismos e dragões... com uma pausa, na qual suas folhas fotossintetisaram mais rápido para gerar-lhe fôlego – ...porque no fundo, o viajante lembrar-se-á que seus sonhos já lhe mostraram tudo isso. E o medo se esvai um pouco quando o desconhecido é o velho conhecido, apenas com uma máscara diferente.
Com aquele desfecho, Tom teve a convicção de que seu mestre lia pensamentos, porque há algum tempo suas malas estavam prontas para partir – malas que se resumiam a uma trouxa surrada amarrada a um firme galho nodoso, o qual poderia servir-lhe de cajado em montanhas muito íngremes –; o fato era que desde há muito seus pés tinham sede de partir para além dos muros de pedra de sua cidade e conhecer as Terras Ermas, seus vulcões, grutas e dragões, como narravam as lendas favoritas.
Tudo o que lhe faltava para partir era uma ordem de seu mestre. E com aquelas últimas palavras, essa hora parecia não estar muito distante.


1 comentários:

Marial disse...

Profundo, brilhante e encantador.