quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Vida Pequenininha

Talvez por pingos de vaidade e resquícios dos desejos de uma criança que almejava ser astronauta, condicionei mente e coração para repudiar a “vida comum”. Aquela em que o cidadão acorda, faz café, se dedica à família, ao trabalho, aos amigos, volta pra casa cansado, dorme e recomeça. Aquela em que o cidadão anda nas ruas ou dirige seu carro e no final de semana, quem sabe, lhe sobre tempo para cantar. Como diria aquela música*.


Deixei-me, portanto, levar pela grandiosidade ilusória de diversas peripécias nesta vida. Fascinada pela grandeza de bandeiras, ídolos, discursos. Já bati em grandes portas, por breves momentos pude entrar em grandes salões. Almejei e cheguei a abraçar algumas grandes estradas, missões e hinos retumbantes, fazendo pouco de pequenas tarefas do dia a dia e do pequeno corredor entre meu quarto e a sala de estar.


E foi no auge do distanciamento máximo que pude alcançar daquela tediosa vida pequenininha que num sopro a Vida retirou-me todo e qualquer fiapo de grandeza, arrastando-me num único assalto ao cotidiano pueril. Da noite para o dia vi-me mãe. Do dia para noite vi-me saindo para trabalhar com burocracias. Da noite para o dia vi-me sorvendo adrenalina de nenhuma aventura outra que não fosse o trânsito de meio dia. Do dia para a noite minhas cartas endereçadas a grandes pessoas não mais foram respondidas.


E dos prazeres pirotécnicos que outrora em fantasia vivi restou-me o tenro gozo de nada mais nada além que uma ocasional noite inteiramente dormida em meio ao turbilhão da maternidade, de um café bem prensados às 5 da manhã, do pequeno assobio de um velho beija-flor, do refrão de Samba da Bênção entoado por meu filho no banco de trás a caminho da escola, do restauro de laços antigos e fragmentados com amigos da infância dispostos a abraçar de volta esta pobre vaidosa que outrora sucumbiu às grandiosidades lá longe.

Descobri, na mágica idade de 33 estar fadada à vida comum. Essa mesma, para quem não mais cabe mudar o mundo. No máximo, talvez, “uma planta de lugar”. Que vazio isso traz! Estaria Atlas tão acostumado ao peso que se um dia o mundo evaporasse ele também se sentiria meio perdido?


Veja-me novamente ainda vaidosa comparando-me a Atlas! É que os pesos da vida pequenininha por vezes também se assemelham a um mundo nas costas… Acreditem os grandes homens e mulheres ou não.


Quão árdua é a reconfiguração da mente e do coração destituídos de sua candidatura a um papel de líder dentro de uma ilusória Grande Vida pelo miúdo papel de figurante nessa vida pequenina**, cuja beleza parece tão vazia, aos poucos preenchida pelo pequeno broto que surge na planta que se muda de lugar, pelos sorrisos arrancados dos novos rostos que aparecem nesse novo enredo, pelas ruas percorridas sob pores do sol até então tratados com displicência pelo grande caminhar que mirava apenas as constelações, pelos novos cantos que recontam uma nova história, cujo brilho se examinado bem de perto é bem provável que se assemelhe ao das estrelas que por ventura poderia ter contemplado se houvesse alcançado a grandeza de um dia ser astronauta.



As músicas:

* “Malandragem”

** “Wish You Were Here”

2 comentários:

Anônimo disse...

👏🏼 adorei!

Anônimo disse...

Percebi que me emocionei com esse texto, quando uma lágrima, lentamente escorreu no lado esquerdo do meu rosto caindo no seio e me vendo na mesma redoma dessa inevitável e massacrante rotina. Ao mesmo tempo, no fundo me conforta saber que a vida há de ter mesmo assim sua graça, beleza e preciosidade... Ao apreciar a fumaça do café pela manhã.. o cheiro das pessoas que amamos.. uma refeição.. entrelaçar de mãos.. talvez todos nossos anseios de uma vida extraordinária estejam resumidos nessas pequenas grandes coisas.